Porque a vida é extraordinária? Lembrança de uma Eclipse Solar.

Certa vez guiei um casal de turistas no deserto do Atacama, no Chile. Minha missão era levá-los ao melhor lugar do mundo para apreciar uma linda Eclipse Solar, que é quando a Lua orbita entre a Terra e o Sol, e, durante esta passagem, os astros coincidem, cobrindo nossa visão do Sol lentamente por alguns minutos.

deserto do Atacama é o mais seco dentre todos os desertos do planeta! Para se ter uma ideia, a precipitação média de chuvas da região é de apenas 1 mm/ano e em alguns lugares específicos não há registros de chuva desde o ano 1570 de nossa era. Imagine só: um lugar que não chove há mais de 450 anos!

Então estar em um lugar como este exige alguns cuidados extras. Hidratação é fundamental, ou seja, deve-se levar um cantil com água em qualquer ocasião e beber o precioso líquido da vida. Enfatizo ‘’precioso’’ porque você não vai encontrá-lo em nenhum bar em cima das dunas, lembre-se, estamos no deserto, longe de tudo o que compreende civilização. Respirar alguns dias por aqui fará com que sua garganta naturalmente comece a ficar irritada e a dificuldade em falar pode começar logo nos primeiros dias. Sem contar que é muito comum o nariz expelir pedrinhas de sangue seco, porque sua foça nasal também ficará irritada com a secura. E não para por aí: o Sol nestas bandas pode torrar sua testa e sua nuca caso você não a proteja adequadamente, pois a temperatura pode chegar tranquilamente a mais de 50ºCélsius. Eu tive que aprender isso na prática, porque em minha primeira vez neste local, apesar de todos os avisos, vesti apenas um boné na cabeça achando que daria conta do problema. O que eu não fazia ideia era o reflexo da radiação solar através da areia do deserto, o que me custou queimaduras ardidas logo no primeiro dia sem o uso do protetor solar. A noite eu mal conseguia encostar meu pescoço no travesseiro e fiquei com a pele sensivelmente vermelha e irritada nos braços também. Não é mole.

Bem, voltando a história do casal de turistas, uma coisa impressionante e nada peculiar aconteceu. Vou contar.

Estávamos na estrada, ou pelo menos assim deveria se chamar aquela terra batida moldada pelo homem. Era uma região no deserto perdida em um raio de 60km de isolamento da cidade mais próxima. Por um acaso do destino…choveu!

Sim, choveu no deserto mais seco do mundo e eu estava lá guiando este pessoal. Mais tarde interpelei os habitantes em um povoado da região se tinham visto chuva em vida e a resposta foi negativa. Mas nós estávamos lá e presenciamos esta raridade acontecendo. Se por um lado parecia uma dádiva dos céus, por outro lado o que se viu foi o céu que desabou sobre nós. Existe uma Cordilheira permeando paralelamente o deserto, ela é conhecida como Cordilheira dos Andes e abraça todo o Chile. Quando chove, o que não é comum nesta área, todos os detritos da Cordilheira descem como uma enorme avalanche até chafurdar no deserto, transformando-o em lama. E foi isso que aconteceu conosco. Nossa Toyota pick-up, embora um carro razoavelmente alto, atolou até a porta e nada podíamos fazer. De repente, estávamos presos e isolados do mundo!

A única opção nesta situação é pedir socorro. A boa notícia é que o celular funcionava bem, mesmo no deserto. A má notícia era como alguém poderia nos localizar e comprometer-se nesta ajuda? Afinal, no deserto a estrada não tem número, nem pontos de referência. Aqui tudo é igual…

Para nossa sorte, ainda era de manhã e teríamos horas de luz para que nos encontrassem naquele vazio completo de nada. Entrei em contato com o serviço de polícia, que por acaso tive o cuidado de armazenar na memória do meu celular. Do outro lado da linha, o policial foi enfático:

– Nada posso fazer, você deve chamar um guincho.

– Pois me informe o contato de um guincho nesta região, por gentileza?

-Ah, meu amigo. Só existe Miguelito! Anote o telefone?

E assim liguei para o guincho local, que aproveitando a inconveniência, me passou um valor exorbitante, algo como uma semana inteira de aluguel do carro em que estávamos. Reféns da única empresa local que provia o serviço, aceitei furioso. Do outro lado da linha, o tranquilo e sorridente Miguelito informou que poderia levar ‘’algumas horas’’ para nos encontrar.

Diante disso, abri todos os mantimentos disponíveis na Toyota (água, comida, lanterna, cobertores), tranquilizei os turistas e solicitei que permanecessem junto ao carro com todos os recursos disponíveis. A senhora me disse “leve alguma água.” Informei: “não se preocupem, eu darei minha vida para ajudá-los e nós todos sairemos dessa” (eu havia aprendido este forte sentimento voluntário com o piloto militar Yuri Poliakov, que me levou até estratosfera, em uma aventura pelos céus russos).  Peguei uma blusa de frio e em seguida iniciei uma longa caminhada por 20km em direção a uma estância turística, onde lá poderia encontrar reforços que poderiam me dar mais alternativas de socorro e eu poderia guiar alguém até a nossa localização.

Só que caminhar no deserto é realmente sinistro. Você anda, anda, anda, e parece que não sai do lugar. A terra fofa com a umidade da chuva, tornava a caminhada lenta, pesada e cansativa. E aí o sol veio com tudo, o que é padrão. A blusa se tornou meu guarda sol e o calor foi transformando todo o ambiente em uma fornalha novamente, com a umidade fazendo juz ao cozimento da minha pele. Pois é, o deserto é um ambiente cruel…

Não demorou muito, comecei a ver as famosas ‘’miragens do deserto’’. Já tinha visto isso em algum filme, mal me passou pela cabeça que podia ser real…ou melhor, miragem! Naquela onda de calor que mexia o horizonte, quando eu pensava enxergar alguém, um vulto, corria um pouco até o encontro e logo via que era apenas uma pedra. Você pode entrar em delírio em pouco tempo, quando isso se repete continuamente. Abutres traiçoeiros começaram a me seguir e voar em círculos sobre minha cabeça…’’Estou muito bem, malditos!’’ – exclamei com os punhos no ar.

Comecei a lembrar de minha falecida avó. Parece que quando você vive um momento de vida ou morte coisas assim acontecem. Eu escutava sua voz nitidamente em meu ouvido: ‘’Marquinho, vem cá um pouquim?’’ – e ela me guiava em frente.  ‘’Marquinho, Marquinho…’’ a voz dela era suficiente para me trazer motivação em meio ao silêncio e solidão infinita.

Aos poucos o tempo passa, aquele calor absurdamente abafado que fritaria um ovo nos meus braços, as miragens, a sede, a fome, a solidão, ansiedade do que não chega, as pernas cansadas e a certeza de não ter certeza de encontrar ajuda, tudo isso vai te enlouquecendo.

É por isso que deve-se manter a mente, corpo e alma sã.

-Só pode ser um grande teste! – pensei.

Nada pode te desanimar, você deve seguir em frente na missão. Mais pessoas dependiam de minha energia e esforço, assim como uma equipe que busca atingir o sucesso em um esporte, assim como um departamento em uma empresa que visa suas metas ambiciosas, seja no interesse da sobrevivência da espécie. Nosso legado é buscar a prosperidade!

E quando o espírito vence as assombrações, neste momento as situações começam a convergir para a vitória. Eu cheguei no posto turístico, um lindo lago petrificado de sal. Ele está lá desde a pré-história, quando o movimento das placas tectônicas empurrou o oceano para a beira do continente, deixando que a água do mar evaporasse e o sal permanecesse ali como testemunho de um evento cataclístico extraordinário. Um lindo arco-íris se abriu no horizonte. Era um sinal de que tudo daria certo!

Sempre há uma guarita nestes locais turísticos e fui logo adentrando para comunicar meu sinistro. E não é que o caminhão guincho havia perguntado sobre um grupo de turistas atolado nas imediações? Em poucos minutos, o guincho estava estacionando no local e pude me identificar como responsável pelo chamado. Entramos no caminhão e seguimos rumo pela estrada por onde andei, ouvindo a canção de Roberto Carlos: ‘’eu voltei! Agora para ficar’’…não me contive de alegria e coloquei meu corpo para fora da janela, aos brados para que meus amigos pudessem me ouvir durante a chegada:

-Ajuda chegandoooo!

Um deles estava brincando de colocar pedras umas sobre as outras, até que se transforme em um mini edifício de pedras. Isso é muito comum de se ver no deserto, porque esta brincadeira ficará do mesmo modo por centenas de anos, desde que um outro humano não apareça por ali e estrague tudo em um leve chute, claro. E como o ambiente voltou a ficar saudável, nada como uma boa lorota para arrancar risos e descontrair o pessoal daquela situação tensa:

– Então galera, reconheço meu heroísmo, nem precisam se agarrar em mim, dizer que eu sou o máximo, a situação está sob controle agora. Eu trouxe a nossa Millenium Falcon! Contenham-se por favor…

Enquanto nos abraçávamos de alegria, Miguelito fazia seu trabalho, encaixou o gancho por trás do parachoque e acelerou, acelerou, acelerou…e o caminhão guincho atolou!

– Vish, agora ferrou de vez! – exclamei, com as duas mãos sobre a cabeça.

– Um minuto senhor, vou fazer uma ligação para a polícia local. – disse o motorista.

– Alô, alô? Sim, é sobre um atolamento…sim, sim…Veja, eu não posso chamar Miguelito, eu sou Miguelito!

E do outro lado da ligação, parece que houve um acordo.

Claro que o tempo passou. Miguelito tentava de todo jeito acelerando para frente e para trás, na tentativa que seu caminhão desgarrasse da lama, mas só o que conseguia era afundar ainda mais. Colocamos pedras embaixo dos pneus e todo tipo de tática ninja, mas não há árvores para usar um caule e montar uma alavanca. Não tínhamos saída a não ser esperar, enquanto a luz do sol ia minguando e o perigo de ficarmos no escuro ia chegando.

– É, parece que teremos de dormir no carro, pois a noite no deserto é muito muito fria.

Uma luz de farou a algumas milhas de distância nos chamou a atenção. Acendemos os faróis dos carros, buzinamos, peguei uma pequena lanterna no porta luvas e subi na caçamba para balançá-la, como náufragos em uma ilha em busca do navio de resgate transitando pelo oceano.

Funcionou! Os faróis foram se aproximando e logo vimos que era a viatura da polícia! Ufa!  E que viatura…mal sabia eu que existia uma pick-up 6×6 super Dodge Ham de quase 3 metros de altura bobeando em um local como este!

-Porque estes caras não me atenderam de início? – exclamei. Olha este caminhão velho do Miguelito pra nos salvar? Sem ofensas, Miguelito, compare isso! Agora é a Enterprize socorrendo a Millenium Falcon!

E o Miguelito me olhou com rosto contrariado. O mais incrível foi assistir aquela super pick-up caminhando pelo lodo como pluma flutuando nas nuvens. Como pode? É muita tecnologia!

Logo, o guincho de Miguelito estava fora de perigo, assim como nossa Toyota. Todos nos abraçamos de emoção ao assistir cada pneu que desgrudava da geleca pantanosa, em plena noite fria no deserto. Lágrimas escorrem pelo rosto. Estamos salvos!

E nada como um dia após o outro nesta coisa maravilhosa chamada vida!

No dia seguinte, o dia da Eclipse, escolhi um local com uma magnífica vista para esta contemplação. O local é conhecido como ‘’Vale da Lua’’. O nome deste lugar não é por acaso: do alto de uma colina, pode-se avistar o horizonte envolto em dunas e cânions, uma paisagem sem vida e quase exótica de um relevo lunar. O céu no deserto é extremamente nítido, livre de poluição luminosa e atmosférica, livre de nuvens e de umidade, o que garante a visualização perfeita dos astros e assim, garantindo a visão completa do fenômeno. Sem dúvida, assistir este evento do Universo em pleno ‘’Vale da Lua’’ é uma experiência ímpar.

Com tantas precauções, o deserto é um ambiente vivo e em mutação. Até mesmo o Eclipse faz sua parte, alterando toda a estrutura ambiental. Muita gente não faz ideia do que significa assistir uma Eclipse Solar. Então eu estou aqui para narrar um pouquinho destes segundos de pura emoção:

‘’De repente, a Lua se coloca a frente do Sol, como se mordesse pedaço a pedaço de luz, até que o sol vai se transformando lentamente em uma banana. Neste ponto é impossível olhá-lo diretamente, o fenômeno deve ser acompanhado com um óculos apropriado de lentes com filtro perto de 100%, ou seja, bem escuras e com uma boa proteção UV – ultra violeta. Mas a Lua continua sua rota, até que em dado momento, ela se sobrepõe perfeitamente ao astro rei. Então o deserto escurece como uma caverna profunda, escuta-se pássaros saindo das tocas e batendo suas asas em voo ligeiramente espantado, a temperatura cai assustadoramente e ventos se movimentam do nada, como se tudo fizesse parte de um grande movimento de transformação. Sim, algo impressionante está acontecendo! Isto é um Eclipse Solar!

Eu fiquei impressionado a primeira vez que assisti este fenômeno e fiquei imaginando os povos indígenas do passado, que temiam enormes desgraças com seus deuses doidos em raiva. O dia se transforma em noite e dependendo do fenômeno, uma coroa de ouro brilha no céu escuro, quando pequenas lascas do sol vão aparecendo…sem qualquer aviso, um farol de luz escapa e este é o aviso que o fenômeno continua seu ciclo, até que o farol vai aumentando e clareando o dia novamente, até que tudo volte como era antes. Foi assim, não mais que 3 minutos que valeu uma vida de emoções. Um dia, temíamos por nossas vidas e no outro, assistimos uma das experiências mais incríveis que o Universo é capaz de proporcionar. É por isso que a vida deve ser valorizada, qualquer que seja a situação de alto ou baixo em que você estiver…

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