Sobre meu treinamento no Gagarin Cosmonaut Training Center – GCTC

Dia 23 de Dezembro de 2019 foi mais um marco na minha vida. Estava dentro de Star City (ou Cidade das Estrelas em português), em Moscou na Rússia. Minha missão era enriquecer meu currículo para um possível voo ao espaço, completando parte do meu treinamento no Tsentr Podgotovki kosmonavtov iem Gagarina (Centro de Treinamento Cosmonauta Gagarin ou GCTC na abreviatura em inglês). A temperatura estava perto de 5 graus e embora considerada uma “temperatura branda” segundo os padrões do rigoroso inverno russo, para um brasileiro recém chegado dos trópicos como eu o clima era torturante.  Os pulmões doíam a cada inalação de ar congelado por dentro da carne quente e fresca do meu corpo. O clima era pior para os ossos das mãos, que sentiam mil alfinetadas internas.

Mas isso não era um problema quando lembrava o motivo de estar naquele local que um dia foi um dos mais bem guardados da intransponível rede de segredos na malha soviética. A Cidade das Estrelas é o local onde até hoje os cosmonautas estudam, residem e trabalham. Onde físicos e matemáticos desenvolveram cálculos mirabolosos para a complexa rota dos foguetes no espaço. Onde equações para o domínio da violenta combustão dos instáveis e voláteis combustíveis, permitiram a transposição entre a atmosfera e o vácuo absoluto. Onde a engenharia dos complexos motores permitiu a maior entre todas as missões e desafios de exploração do ser humano. Ao mesmo tempo, a Cidade das Estrelas é o lugar onde pioneiros como Yuri Gagarin, Leonov, Tereshkova e Titov faziam compras na quitanda local. Este era definitivamente o “centro religioso” da engenharia russa, focada em levar tudo mais que se destine ao ambiente mais inóspito e desconhecido do vazio profundo. Sacava os edifícios que cercavam o perímetro, todos iguais de 4 ou 5 andares, quadrados e antigos, sem qualquer restauro de fachada eram os mesmos como se via 60 anos atrás quando construídos. Uma máquina do tempo rolava em minha cabeça, como se eu estivesse vivendo nos primórdios da era espacial. Quanta história passou por aqui…

E enquanto eu seguia pelas ruas frias e arborizadas daquele local, enfeitadas por monumentos em mosaicos coloridos de foguetes, naves espaciais, estrelas e cosmonautas, bem ao estilo padrão soviético, minha mente criava nuvens imaginárias sobre o que estava prestes por vir: a oportunidade em ver de perto, tocar, vestir e realizar simulações com uma roupa real utilizada por cosmonautas no espaço! Sensacional!

Caminhava seguido por um dos “inspetores” locais, já que não se anda desacompanhado de um segurança responsável por aqui. Seus movimentos são vigiados. No primeiro edifício que entrei, descobri que até minhas bactérias são vigiadas. Antes mesmo de pisar na entrada, o porteiro me solicitou que calçasse uma luva para os sapatos, um propé. E então fui dirigido a um dos corredores até uma sala médica, onde me aguardava a inspeção do restante de minhas bactérias no exame clínico. A médica me atendeu com um sorriso simpático, solicitou que eu retirasse minhas meias e camisas, buscando contaminações e inflamações superficiais. Mediu minha altura, pesou meu corpo e terminou com uma rápida entrevista sobre meu histórico médico. Se eu estava prestes a vestir uma roupa de mais de 10 milhões de dólares, claro que eu não poderia deixar infecções aos próximos colegas de treinamento. Então, como minhas bactérias e análises clínicas estavam normais, meu peso e altura condizia com o equipamento, consegui minha aprovação e parti para o próximo segmento.

Seguimos para o andar de baixo descendo pelas escadas, entre cosmonautas  e cientistas que cruzavam meu caminho, e embora eu adoraria parar para bater um longo papo, o inspetor não me permitia realizar nada sobre o que já não estivesse na sua programação. Assim, passei atravessando diversos laboratórios e equipamentos de simulação espacial, andando como uma criança que quer ver tudo e não pode ver nada.

Uma enorme réplica do projeto histórico cooperativo ApolloSoyuz da missão espacial utilizada em julho de 1975, quando União Soviética e Estados Unidos pela primeira vez deram as mãos no espaço, ocupava todo um galpão a minha frente. Exatamente em frente destes monstros da história espacial, estava minha segunda sala de preparação. Lá, mais uma vez passei por uma bateria de exames e desta vez eram 3 médicos. Um deles anotava tudo em sua prancheta, enquanto os outros 2 me dissecavam de cima abaixo. Um dos médicos apontava um termômetro digital infravermelho de testa, outro media minha pulsação cardíaca. Alí era o local onde me prepararia com duas de um total de 3 vestimentas que compõe a roupa de um cosmonauta.

A “primeira e segunda pele” que vão por baixo da Orlan, esta última a famosa roupa branca e fofa que vemos nos filmes. Então mais outros dois assistentes apareceram para tomar minhas medidas e classificar meus padrões: a primeira pele era um macacão que lembrava um pijama branco de algodão. Ela tem uma função puramente higiênica para a roupa que vem a seguir. A segunda pele era mais exótica.

Chama-se LCVG (Veste de Ventilação e Resfriamento Líquido). Um macacão azul que se veste em cima da primeira. A LCVG é toda emborrachada e cheia de poros e microtubos por onde circulam um líquido refrigerante. Ou seja, para manter o cosmonauta em uma temperatura agradável fora da espaçonave, onde a temperatura pode variar entre 120º celcius positivo e 100º celsius negativos, a LCVG ajuda a manter a temperatura interna constante. Claro que ela não age sozinha. Para isso, temos a terceira e última vestimenta, a Orlan que explicarei mais tarde. A LCVG nada mais é do que uma espécie de ceroulas com tubos de líquido, conectados à mochila externa que vai nas suas costas, chamado “IDB”. Existem situações em que a IDB mantém-se presa por meio do chamado cordão umbilical da espaçonave, fornecendo além do liquido refrigerante, o suprimento de oxigênio na Orlan.

 

Ser cosmonauta no espaço depende de um desempenho impressionante e muito complicado destas roupas, que agem simultâneamente. Imagine como estes profissionais podem ficar em um local sem suporte e trabalhar por horas lá? Acredite, hoje em dia é uma operação bastante regular, realizada por todas as expedições a bordo da ISS (sigla em inglês para Estação Espacial Internacional).

Para preparar os cosmonautas para uma missão tão complicada, é importante treinar essas habilidades aqui na Terra. O principal local para esse treinamento é o laboratório de flutuabilidade neutra ou o laboratório hidrelétrico em GCTC. O único simulador Egress-2 do mundo também é uma das importantes instalações de treinamento para esse fim. Ele simula a caminhada espacial para quem utiliza estes trajes, sendo verdadeiramente a primeira fase de adaptação nestas vestes.

Então após a ajuda de dois coordenadores para vestir a LCVG, fui acompanhado até a terceira e última sala onde finalmente me aguardava o Orlan para estas simulações. O traje estava montado para literalmente “entrar” nele como se entra em uma casa. Parece estranho, mas diferentemente do traje espacial americano em que você precisa de uma pessoa para ajudar você vestir peça a peça, encaixando uma na outra, uma operação que pode durar meia hora, o traje russo parece um imenso robô. Ele tem uma portinhola na mochila das costas que você abre, “pula” para dentro da roupa e pronto, já está vestido! A escola russa sempre foi diferente, mas complementar a escola espacial norte-americana. Qual roupa é melhor, é discutível. Os americanos desejam uma roupa em que o astronauta possa ter a precisão e a delicadeza para tocar um piano no espaço. Já os russos entendem que o espaço é um ambiente hostil, e por isso a roupa de um cosmonauta deve ser vestida em poucos segundos, atendendo quaisquer emergências, sem contudo precisar ser tão flexível.

Fui apresentado a Dimitri Zubov, o responsável pelo meu treinamento com o Orlan. Ele iniciou explicando que já passaram por esta aula mais de 120 profissionais que chegaram ao espaço, e eu era o segundo brasileiro. Então seguiu apresentando a Orlan, o traje espacial russo que pesa mais de 100 kg e é uma mini espaçonave autônoma, com todos os sistemas de suporte à vida necessários. Importante notar que a Orlan é uma roupa de nylon especial, com diversas camadas internas de alumínio e vácuo, protegendo o cosmonauta dos altos níveis de radiação do ambiente espacial.

Zubov começou a aula ensinando todos os equipamentos da roupa, os botões de acionamento para as funções de oxigênio, lanternas, funções dos visores digitais, volumes do rádio comunicador, liberação de líquido refrigerante e dos propulsores de deslocamento, entre outros. Você aprende a abrir a “porta” (a mochila), entrar na roupa e fechá-la puxando uma alça.  Da mesma forma que o cosmonauta pode urinar durante o passeio, ele provavelmente ficará com sede. Para isso, existe esta mochila IDB de apoio com um reservatório com cerca de 2 litros de água que podem ser consumidos por meio de um pequeno canudo que fica por dentro do capacete, ao lado da boca do cosmonauta.

Mais do que uma simples roupa, a Orlan é responsável por criar uma atmosfera pressurizada adequada, como uma espécie de balão, além de garantir oxigênio e ser capaz de expelir o gás carbônico advindo da respiração. Dentro da Orlan, a pressão fica em torno de 0,29 atm, um terço da pressão atmosférica terrestre, e o cosmonauta precisa respirar oxigênio 100%, diferente da combinação de 78% nitrogênio, 21% oxigênio e 1% de outros gases, como é por aqui na Terra. Com isso, é necessário passar por um momento de “pré-respiração” antes de sair da nave ou da Estação Espacial para entrar no Orlan. Apesar do traje buscar garantir um ambiente tecnicamente adequado para o organismo humano, as mudanças em comparação com a atmosfera terrestre são grandes e a adaptação nem sempre é fácil.

Na simulação, um dispositivo permanece prendendo a roupa a um guindaste, desta forma utilizando controles simples a roupa de 120 kilos pesa o mesmo que um uniforme de abrigo, que é exatamente a ausência de gravidade no espaço e para qual ela foi projetada. Então você realmente será capaz de realizar uma caminhada sem peso, dominando o equilíbrio do conjunto e andando desengonçadamente como um boneco gigante. O capacete é grande o suficiente para permitir uma visualização 180 graus, mas abaixar-se é um problema, então temos espelhos colados no antebraço que permitem enxergar o chão logo abaixo nos seus pés.

O curso continua com a mudança para a gravidade lunar e também para a gravidade marciana, testando a caminhada nestas situações. Então você entende porque na Lua é mais fácil caminhar dando pulinhos, com um sexto da gravidade terrestre, você se torna um super-homem e pode quase planar em voos de galinha em câmera lenta. Já na simulação marciana que é apenas um terço a da Terra, a roupa de 120kilos passa a ter 40kilos, e os ombros entendem o sobre peso. A roupa não é adequada neste caso e levantar os joelhos para caminhar é mais difícil, porém na gravidade terrena seria impossível.  Somos convidados a controlar os mesmos sistemas em cada situação, sentindo a diferença no peso dos braços também. Entendo que o mais interessante é poder realizar algumas atividades padrão de cosmonautas, como sair da nave ou da Estação Espacial a fim de explorar uma superfície ou realizar consertos externos em sondas espaciais ou na própria nave. Pude abrir escotilhas, desatarraxar parafusos, utilizar ganchos de segurança e obter algumas habilidades para trabalhar nestas condições sem gravidade, como se estivesse realizando uma missão de EVA (extra veicular) fora da ISS.

A missão terminou com a simulação de liberação de um nano satélite em órbita.

Uma vez que completei o treinamento para domínio de equipamentos para navegação, uso e caminhada espacial, fui condecorado com um Certificado emitido pelo GCTC, brindando minha experiência e me levando mais perto do tão sonhado voo espacial.

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Comentários
  • Ana Frank
    Responder

    Deve ter sido muito emocionante imaginar no espaço na Lua com essas roupas. Ser um cosmonauta por um dia conhecer o espaço onde esteve Gagari e Tereshkova! Ao Infinito e Alem!!!

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