Missão segredo do Abismo: Mergulho profundo em um Submergível

Dia 17 de novembro de 2013. Dia lindo! O sol era astro rei, dominando o belo céu azul da manhã. Neste dia havia programado uma experiência fascinante que me levaria a conhecer outro mundo: o oceano em profundidade extrema! Provavelmente, pelo ineditismo desta operação, obtendo sucesso eu teria contato visual com vestígios e fragmentos de Chicxulub, uma antiga cratera de impacto soterrada debaixo da Península do Yucatãn, no México. A cratera tem mais de 180 km de diâmetro, tornando-a uma das maiores estruturas de impacto conhecidas no mundo! O bólido que formou a cratera tinha pelo menos 10 km de diâmetro e segundo os estudos,  O impacto associado com a cratera teria envolvido a extinção de numerosos grupos de animais e plantas, incluindo os dinossauros, culminando com o fim do período que chamamos Cretáceo. Em uma boa probabilidade, a missão consagraria um possível recorde de profundidade para um brasileiro em mergulho por meio de submergível em mares estrangeiros. Embora enriqueça meu currículo, o objetivo segue focado na caminhada, na exploração, no descobrimento, no conhecimento…

Assim, me dirigi a grande bacia de corais situada na região do Caribe, mais precisamente na ilha de Roatan, em Honduras. Não se tratava do epicentro da queda, mas um local com magnífica sorte para fragmentos testemunhos de tudo, já que o impacto teria liberado uns 400 ZJ (4,0 × 1023 J) de energia, equivalentes a 96 teratoneladas de TNT. Como comparação, o mais potente artefato explosivo criado pelo homem, a Bomba Tsar produzida pelos soviéticos, tinha um rendimento de apenas 50 megatoneladas de TNT, ou seja, o impacto de Chicxulub foi dois milhões de vezes mais potente. Até mesmo a erupção vulcânica mais energética conhecida, que liberou aproximadamente 1 ZJ (240 Gt de TNT) e criou a caldeira de La Garita, foi significativamente menos potente do que o impacto de Chicxulub. E lá em Honduras, encontraria Karl Stanley, um desses gênios da engenharia, escondido dos holofotes e do sucesso da cidade grande, para morar na calma e pacata vila de uma ilha com pouca estrutura e não mais que 20mil habitantes.

Stanley é proprietário de um raro submergível, projetado e construído por ele.  Existem pouquíssimas empresas no mundo com tecnologia para produzir este tipo de equipamento que exige não só uma boa dose de investimento, cuidado precioso na precisão da estrutura, como também uma arquitetura de projeto inovadora. Para se ter uma ideia, um submarino da marinha brasileira, o mais moderno entre todos, custa vários milhões de dólares e sua capacidade de submersão é da ordem de 400 pés.  Stanley foi capaz de construir o seu próprio submergível com muito menos de 500 mil dólares, com capacidade de submersão da ordem de 2000 pés, ou seja, um feito impressionante! Stanley não era apenas o piloto do submersível, ele era o criador do projeto, o financeiro, o engenheiro, manutencista, atendente e dono da empresa. Ele é tudo em um só! O cara é o cara!

Encontrei-o no chão, apertando parafusos como um mecânico faz, de shorts sujo de graxa e camiseta regata, nada mal para quem vive sob o sofrível calor caribenho. Eu já havia pesquisado muito sobre ele e me empolguei com sua história de persistência solitária na conquista dos mares através da realização de seu sonho.

“O cara” tem uma história de vida daquelas que vale a pena conhecer: seu primeiro submarino foi construído quando ele tinha apenas 9 anos de idade. Certo de seguir seu objetivo em construir uma verdadeira obra prima da engenharia, estudou, pesquisou, investiu recursos e construiu. Escolheu morar longe da burocracia, das regras, dos custos. Escolheu morar onde poderia acessar seu universo, junto aos mares límpidos e cristalinos do Atlântico,  onde poderia buscar desafios por trás da imensa barreira de corais caribenha, a segunda maior do mundo. Construiu sua casa com os corais da ilha, utilizando massa ecológica para a vedação. Ela fica bem perto do grande “muro de corais”, seu local dos sonhos, porque era pouco explorado cientificamente e atendia seu desejo pelas ”descobertas”. Assim, construiu o cais, o “estacionamento e área de manutenção” de seu submergível bem em frente de sua casa, um custo a menos para ele nos deslocamentos.  Por coincidência, além do espírito explorador, temos também a mesma idade, nascemos no ano de  73.

Combinei com Stanley que eu precisava ir o mais fundo possível, onde pudesse acessar áreas intocadas pelo homem desde os períodos pré-históricos. Para cumprirmos esta missão, faríamos um trajeto diferenciado ao oferecido a outros navegantes. Para se atingir algo próximo a 2000 pés de profundidade, teríamos de alugar um barco, afim de transportar o submersível as áreas mais distantes da costa, onde as profundidades são maiores. O próprio Stanley brilhou os olhos e mostrou-se ansioso. Seriam 9 horas de viagem economizadas com o submergível , porém teríamos um custo extra com nosso ”guincho”. Notei o entusiasmo de Stanley quando expus meu desejo por um programa diferenciado, porque mesmo pra ele, com muitas centenas de mergulhos realizados,  era a oportunidade de buscarmos um local onde ele ainda não havia explorado, o que tornava a experiência ainda mais diferenciada.

Assim, para se buscar vestígios de um mundo assolado por um ataque espacial, foi montada uma megaoperação que envolvia uma agencia de passeios aquáticos, com uma lancha e 3 tripulantes, que seriam responsáveis pelo transporte do submergível até o ponto do abismo profundo. De maneira divertida, batizamos a missão de “Segredo do Abismo” em homenagem ao filme de mesmo nome, uma ficção com seres de outro planeta que viviam em uma base secreta no fundo do Oceano, já que ele dizia que eu era o “homem do espaço”…e ele não estava nada errado.  Um dos objetivos de minha missão era justamente simular uma cápsula espacial, viajando e desvendando caminhos por outro mundo. Era minha chance de explorar o mundo que pouco conhecemos, justamente a grande ironia científica que sabemos mais sobre fora da Terra do que sobre o fundo do nosso Oceano. Já que eu pretendo visitar o espaço algum dia e estou trabalhando muito para isso, nada mais sensato que conhecer meu planeta natal primeiro.  Poderia finalmente presenciar o incrível poder imaginativo da evolução marinha, escondida de nós pela limitação de nosso corpo frágil. Assim que atingisse o fundo, para testar o efeito da pressão, uma brincadeira: levei um copo de café de isopor do tamanho de um punho fechado. Fiz um desenho em canetinha em uma das faces para comprovar a experiência. A ideia era ver o que aconteceria com aquele copo.

Um misto de excitação, aventura e curiosidade, me traziam até aquele local, ao lado daquele grande homem, para explorar um local tão sombrio quanto monumental. Certamente veríamos coisas que enchem a alma de qualquer um de fascinação.

Havia estudado a biografia de grandes exploradores das profundezas, como Don Walsh, James Cameron e a lendária familia Piccard, Jacques e August. Porque não mencionar a breve leitura de Julio Verne e suas 20mil Léguas Submarinas que adquiri no EBay por alguns dólares, edição de 1898…

Stanley me ensinou a verificar os estoques de oxigênio, os cilindros responsáveis pela imersão e submersão do veículo, a checagem das 2 baterias, a de controle dos equipamentos internos e a dos propulsores elétricos, além é claro da limpeza interna da estrutura e dos vidros, garantindo uma viagem confortável e estimulante. Solicitei estoque de ar para 3 dias dentro do submergível, ao que ele recomendou desnecessário, porém seguindo com o plano. Levei comida de astronauta, a qual estou habituado em carregar comigo em todas experiências que envolvam tempo, falta de espaço e meios de preparo. Da mesma maneira, solicitei para que o barco ficasse de prontidão para nossa volta, o que segundo a previsão, aconteceria no final do dia. Se algo acontecesse, o barco estava equipado com rádio patrulha, equipe experiente,  GPS, sonar e tudo mais que pudesse buscar  garantir nossa integridade.

Obviamente que uma missão de resgate seria dificultosa neste caso, com chances mínimas de sobrevivência. Afinal, são dezenas as possibilidades em algo dar errado. A começar, pelo imenso peso do Oceano sobre nossa frágil cápsula de sobrevivência. A pressão é tão grande quanto um Empire State sobre a unha do meu dedo mindinho. Uma simples rachadura no casco culminaria em uma destruição instantânea que transformaria meu corpo em espuma. Por isso, nada podia dar errado.  Muita atenção aos detalhes e mais que isso, minha fé positiva, uma ferramenta espiritual sempre poderosa.

Sobrava-me resolver o custo não planejado. Negociei com o dono do barco de transporte e ele topou uma permuta: embora lhe faltou coragem, sua esposa se prontificou em assumir o lugar como mais um integrante na tripulação de nosso submergível. O objetivo dela era ir e assistir. Ou seja, acabei não precisando pagar os custos de transporte e guincho do submergível. Éramos 3 então. Michel era da Holanda, país com imenso legado na história das navegações. Ela ficou extremamente surpresa com minha oferta e olhou para seu marido como um cachorrinho que precisava passear. Ao que ele movimentou a cabeça com o “de acordo”, um ponto positivo a nosso favor, na garantia que a equipe estaria realmente atenta aos imprevistos. Já do meu lado, o custo do aluguel do submergível seria exatamente o mesmo com ou sem ela. Fiquei na vantagem!

Foram apenas 4 horas do planejamento da operação de transporte ao local escolhido.  Segundo Stanley, uma experiência inédita mesmo para ele. Estávamos ansiosos para desvendar o que encontraríamos por ali.

A pequena Idabel, nome de batismo de nosso submergível é o nome da pequena cidade de Stanley e de onde seu sonho começou a ser construído. Amarramos Idabel ao barco guincho e seguimos puxando como um cavalo em fase de adestramento, guinava para todos os lados como uma fera indomesticável durante o surfe até o ponto da operação.

As 14h30 horário local, começava nossa aventura e logo, o primeiro imprevisto apareceu: em alto mar, as ondas são enormes de modo que precisávamos pular do barco guincho para o pequeno casco de nosso submergível, ou seja, era como saltar de uma balança em um parque de crianças para a balança 2 metros vizinha em um único pulo, e no lugar do chão tínhamos um oceano revolto. Simplesmente dois veículos em movimentos difusos e o receio de começarmos com um acidente em alto mar. Stanley que era o mais experiente e também o piloto, foi o primeiro…e caiu! Naquele momento pensei que nada de ruim poderia acontecer ao nosso comandante, pois do contrário, a operação se encerraria por ali.

Mas Stanley não se apavorou. Sua experiência com os mares falou mais alto. Em meio as ondas que tentavam cobrir nosso pequeno protótipo e ao próprio Stanley, agarrou firmemente a proa e iniciou sua escalada na Idabel. Todo molhado e meio desajeitado devido ao balançar das ondas, agarrou a corda lançada pelo nosso marinheiro do barco, manipulando o submergível para mais perto. Depois, minha vez de pular e…aí ficou bem mais fácil. Na mosca!

Stanley berrou: “eu vou abrir a escotilha, entre o mais rápido que você puder, se uma onda cobrir nosso submergível será o fim de tudo! Entre e vá direto para a cabeça do submergível porque ele não está corretamente balanceado.” Stanley sempre partiu com o submergível de sua doca particular, um estaleiro com quebraondas, sub perfeitamente nivelado e em águas rasas. Ninguém lembrou que em alto mar éramos apenas como um pequeno e frágil bote que atravessa ao lado de um transatlântico reverberando suas perigosas ondas.

E eu notando que poderia ter colocado meu mais novo amigo em uma fria, com um prejuízo de uma vida inteira de trabalho e dedicação, obedeci como um raio. Se a nossa Idabel partisse do estaleiro como sempre fez, com a tripulação dentro, e desta forma, com o peso corretamente distribuído, cada um no seu assento, o início da viagem seria balanceado e sem perigo. Mas neste novo caso, mudamos tudo!  Então entrei pela tampa superior do submergível como uma formiga entra no formigueiro, de cabeça para baixo e me agarrando onde podia, com cuidado para não acertar nenhum painel. Espirrava água do mar por todo lado e balançava muito.  Estava uma loucura, eu era um milho no pipoqueiro. Tentava equilibrar-me em uma cápsula um pouco maior que um fusca e que chacoalhava aleatoriamente.  Logo em seguida, veio minha companheira, Michel, que acertou o casco sem problemas. Puxei-a pelas pernas para agilizar sua descida para dentro e logo nos posicionamos bem na frente, afim de nivelarmos o peso e evitar um desastre. Naquele instante o risco era enorme, uma vez que se uma onda cobrisse Idabel causando seu afundamento, com a força da água de entrada dificilmente conseguiríamos escapar do invólucro com a pressão exercida. Até que a escotilha fechasse, o perigo de inundação era premente.

Apesar de nosso rosto de “isto não estava no script”, Stanley apareceu feliz da vida com este toque a mais de emoção em nossa aventura e fechou rapidamente a escotilha.  E ele estava particularmente babando de felicidade com este imprevisto. O espírito do “rumo ao desconhecido” tinha picado Stanley. Estávamos prontos para partir!

Nossa pequena Idabel tem uma imensa janela panorâmica em forma de bolha, bem à frente do local destinado aos novos exploradores. Eu realmente me sentia em uma cápsula espacial, sentado quase que na vertical.

Stanley havia pensado em tudo: seu investimento estaria coberto pelos “exploradores patrocinadores” como empresas de pesquisa e alguns esquisitos como eu.  Por esta bolha de vidro blindada, a visão que tinha metade submersa era da água da superfície que avançava com força assustadora no casco, batendo com força em todos os lados. Enquanto o oceano nos enfrentava, eu sonhava. Era a minha tão sonhada cápsula espacial preparando-se para a partida. Stanley tinha um lugar de pé, bem atrás de nós, onde ficavam os comandos. Só podia ver suas pernas, pois a área de comando ficava toda na parte de cima. Uma vez fechada a escotilha superior, daí pra frente era iniciar a descida e aproveitar a experiência.

Cilindros de ar esvaziados e imediatamente iniciava-se o processo de submersão. As ondas pararam de nos cutucar e silenciosamente mergulhamos em direção ao fundo.

Trinta pés e as águas em tom azul marinho transformavam o passeio em algo celestial. Mas Idabel descia rápido…100pés…eu mergulhei muito por aqui durante minhas scubas…é onde a fauna marinha é mais rica, os peixes são de diversas cores e tamanhos, muito embora durante este percurso, nada de avistamentos a não ser o topo espelhado da superfície, nos lembrando nossa partida para outra dimensão.

200 pés…novidade! Definitivamente éramos um peso de chumbo em rota de colisão com o fundo.  300 pés. Daqui em diante nenhum ser humano conseguiu chegar sem equipamentos de mergulho. E o azul tornava-se cada vez mais turvo, até que em um momento se tornou cinza. E continuamos com a traseira do submersível para baixo e a posição de decolagem que tínhamos (sentados e empinados para o alto) já não enxergávamos mais a superfície. E íamos caindo, caindo como um imenso casulo de aço e vidro viajando a velocidade de 4,2 nós para baixo.

400pés, impossível para mergulhadores especialistas e campeões em apnéia!

Atingimos 500 pés, a mesma profundida que eu tinha conseguido em um submergível em Curaçao…nesta marca mergulhos humanos com escafandro em plataformas submarinas já são bem difíceis, embora um marinheiro de boa patente tenha sido capaz de atingir em um submarino militar. Onde estão os peixes afinal?

1000 pés, a profundidade de um submarino nuclear norte-americano. Aqui a luz já não chegava. Definitivamente, estávamos além de qualquer opção para resgate. De cinza passou rapidamente ao breu total, escuro como o universo. Stanley acionou os holofotes em busca de um ponto de referência: graças a eles, voltamos a ver a cor azul, que era bem menos apavorante. Nossa visão era de pequenos detritos de areia flutuando em um azul marinho intenso. Para mim, estas areias eram como poeira estelar. Nenhum ser vivo se via, não se via o muro do abismo que era nosso objetivo e ao qual o sonar da lancha havia indicado estar ali. A conclusão óbvia: nós estávamos no meio do abismo e caindo! Nem os potentes holofotes tinham amplitude suficiente para captar onde estava a parede de corais. Nosso receio era encontrá-lo em uma trombada, já que viajávamos de costas!

E continuamos atentos ao profundímetro, que mais parecia um relógio de ponteiro com seu cronômetro decrescente, tal a velocidade que caíamos. Logo pensei que começaria a ouvir os estalos da imensa pressão junto ao casco, uma sensação que poderia ser aterrorizante.  E afinal, porque lembrei disso?

Pac Pac! Veio o primeiro estalo! Este é aquele momento que nossos instintos se colocam em alerta máximo. Eu tinha plena consciência que estava fazendo algo inusitado, e que quanto mais fundo eu ia, maiores eram as chances de um problema aparecer. O que precisamos fazer nesta fase de risco é relaxar ao máximo. Respirar fundo, esvaziar a mente e curtir aquilo que nos é proporcionado. Viver a aventura. Eu não estava atrás de uma marca, isso era apenas o resultado do trabalho. Eu estava ali para aprimorar meu desenvolvimento intelectual, minha capacidade de resistência ao medo, ao desafio, testar minha coragem. Eu estava ali principalmente para viver a descoberta, o fascínio da operação, os surpreendentes enigmas do caminho, a beleza da tarefa. Eu poderia fazer 100% de correlação desta aventura com uma viagem de exploração espacial porque lá fora tudo era negro e eu estava sentado em posição de decolagem dentro de uma cápsula. Viajava em outro mundo, desconhecido e intocado pelo homem. Nossa sobrevivência dependia 100% da confiabilidade do equipamento.

E eu estava experimentando tudo aquilo. Naquela profundidade existem milhões de microrganismos, os bacteriófagos, que em um único balde no oceano existem mais destes seres que toda a população da Terra juntos. E quanto mais fundo, menor a biodiversidade e menos seres vivos para ver. Mas precisava viver o momento, buscar qualquer sinal de vida aparente em um mundo escuro e vazio, que pudesse me conectar com a minha dimensão e que precisava ser explorado.

E foi neste instante, a 1200 pés que vimos nosso primeiro ser vivo. Um peixe tão minúsculo que talvez não chegasse a 1 centímetro, mas brilhou como prata e trombou bem a nossa frente no vidro. Apelidei ele carinhosamente de “faísca”, nossa primeira descoberta. Ele era tão pequeno, tão brilhante e tão curioso que insistia em penetrar pela nossa janela de observação. Estava ali solitário e louco pra bater um papo, insistindo até finalmente ser vencido pela nossa velocidade de descida.

Descendo, descendo…e enquanto a expectativa ia aumentando, qualquer graozinho de areia que brilhasse um pouco mais nos chamava a atenção. Aquele escuro indescritível que tive a chance de ver em minha viagem a estratosfera, agora já não me parecia mais novidade, tínhamos uma imensidão sem fim a ser explorada em nosso próprio planeta.

E então…algo aconteceu!

Uma luz começou a piscar naquele escuro absoluto, tão pequena mas igualmente radiante como a de um vaga-lume no cerrado. Piscava repetidamente como uma mensagem de boas vindas. O que seria aquele contato? Era um sinal?

De repente não era um, em poucos segundos apareceram 5, 10, 50…logo era impossível contar. Eu estava diante de uma constelação! Toda nossa visão estava ocupada com aquele show de luzes piscantes como infinitas árvores de natal e eu não sabia o que falar a não ser paralisar meus olhos de atenção com aquele show. E enquanto eu parecia ali petrificado, um susto me tirou daquele estado inerte: desta vez, uma pequena água viva bioluminescente trombou em nossa janela. E logo apareceram várias…eram diversos seres curiosos observando a nós, os visitantes de outro mundo! Estavam ali piscando em várias cores: vermelho, azul, verde, amarelo, branco…nosso comitê de boas vindas pareciam nos sinalizar algo, até que este “algo” aconteceu: finalmente avistamos o grande muro! Entre as rochas escuras, uma aproximação a centímetros do muro avistamos amostras que revelavam a existência de vidro de tectito, que se forma apenas com o calor produzido por impactos de asteroides ou de detonações nucleares de grande potência.

Nossos “amiguinhos” estavam ensinando o caminho. Stanley imediatamente acelerou para o encontro com a parede do abismo, a nossa referência para continuar a descida.  Um grande alívio se estabeleceu entre nós, que agora tínhamos um parâmetro para nos guiar. Pequenas anêmonas transparentes serviam de referência.

Aquelas surpresas iam acontecendo e logo já estávamos confortáveis com o passeio. Mas uma vez que nossos holofotes extras são ligados, nossos companheiros bioluminescentes desapareceram. Eles são seres invisíveis na luz. A natureza prendou-os com esta vantagem aos predadores de plantão.

A rocha que assistíamos estava a 1600 pés de profundidade, isso era muito fundo. A temperatura externa era de 1,2 graus celcius. Estávamos admirando um local intocado desde a era do gelo, a milhares de anos atrás! Era como estar dentro de uma cratera ou um vulcão inativo, escuro e frio…logo percebíamos que a temperatura interna da nossa nave aumentava continuamente, inversamente a temperatura externa, a temperatura interna começou em 14 graus e agora eram 24. E eu logicamente não podia deixar de fazer comparações com a exploração de um planeta desconhecido. Nesta fase, tudo era ar de mistério…

Stanley apontou os potentes holofotes para baixo e finalmente o cenário se revelou. Agora tínhamos um bom panorama do relevo submerso porque conseguimos capturar a imensidão de tudo aquilo. Rochas negras e gigantescas da altura de edifícios. Magnífico!

Stanley habilidosamente atravessou uma fenda gigantesca a pouquíssimos centímetros de distância do nosso casco, e em certo ponto me questionei se ele sabia o que estava fazendo. Stanley e sua Idabel eram comprometidos pelo laço da cria e do criador. Naquele plano, ele confiava na máquina como a um irmão mais velho que sabe o que faz. Me coloquei em minha insignificância, afinal, quem era eu ali pra questionar?

Seguimos em frente e descobrimos mais rochas enormes, uma delas em especial parecia ligeiramente tombada, como parte de uma catástrofe a milhões de anos atrás. Agora eu me sentia em uma cápsula do tempo, assistindo a pré-história! As evidências incluíam argila marrom-esverdeada com um excesso de irídio, que continha grãos de quartzo de impacto, e pequenas contas de vidro alterado, que pareciam ser tectitos. Estavam também presentes depósitos espessos e misturados de fragmentos de rocha grosseiros, que se acreditava terem sido arrancados de algum lugar e depositados em algum outro por um megatsunami com quilômetros de altura provavelmente causado por um impacto contra a Terra. Estes depósitos encontram-se em muitos lugares, mas estão concentrados na bacia do Caribe. O propósito da viagem estava sendo cumprido e ainda tínhamos tempo para o turismo.

Naquele cenário como nunca se viu, encontramos mais algumas criaturas que vinham timidamente bater em nossa janela. Uma delas parecia um cogumelo transparente, pois tinha um cérebro vermelho dentro e do qual saiam pernas finas e longas, que eu apelidei de “alien”. Este tipo de fauna marinha só pode ser visto em determinadas profundidades, infelizmente poucas pessoas no mundo tem a oportunidade de vê-los de perto.

Nosso profundímetro atingia a marca impressionante de 2000 pés e a pequena Idabel começou a suar por dentro. A temperatura interna atingia 38 graus, bem diferente dos 14 graus com o ar condicionado à toda no início da viagem. Mas agora nosso sistema de ar condicionado não dava conta do tempo de permanência que programamos ali, quase 4 horas submersos. Estávamos literalmente cozinhando, embora a temperatura externa do oceano beirava os 4 graus. O curioso é que nada disso não nos incomodava. Ninguém queria perder os últimos momentos daquela incrível aventura.

Idabel mantinha a rota, costurando caminhos maliciosamente por aquela rede de cânions marinhos. Entre as rochas, escondiam-se seres bem maiores. Pudemos ver estrelas do mar, corais de variadas cores, vários tipos de musgo, lagostas, águas vivas e diversos tipos de criaturas bioluminescentes que vou precisar comprar um livro para identificá-las todas. Uma vez que a cor azul penetra melhor na água, simplesmente não há muitos animais azuis nas águas profundas do oceano; o seu corpo refletiria a luz azul e tornar-se-iam bastante visíveis para os predadores. Os animais pretos absorvem todas as cores da luz disponíveis e os animais vermelhos também parecem pretos; não há luz vermelha para refletir nesta profundidade e os seus corpos absorvem todos os outros comprimentos de onda de luz disponíveis. É possível assistir um peixe vermelho nadando na superfície do oceano, parece vermelho porque reflete a luz vermelha. Mas a essa profundidade é difícil, senão impossível, ver o peixe vermelho, que parece ser escuro porque não há luz vermelha para refletir e o peixe absorve todos os outros comprimentos de onda da cor.

A caminho do nosso destino avistamos o fundo do abismo,  a planície de areia. Lentamente, iniciamos um procedimento de pouso.

Neste processo, o cuidado é máximo: a areia fofa demais, pode segurar nosso submergível no fundo do oceano para sempre. Por outro lado, pousar em uma rocha pode “encaixar” nosso “trem de pouso” em alguma vala ou fenda invisível. Stanley optou pelo mix, parte areia, parte chão “rocha”. Nosso pouso centímetro a centímetro, não levantou areia, foi tão macio quanto deitar em uma cama de penas de ganso.

“Houston, a águia pousou!” – disse em voz alta. Estava me sentindo um astronauta pousando no planeta Netuno.

Paramos por ali, a incríveis 2.260 pés de profundidade. Um enorme peixe tipo enguia passou por nossa janela em movimentos flamulantes, era nossa “bandeira de chegada”. Durante esse mergulho, a cada 10 metros a pressão sofria um incremento de 101kPa, então se você dividir a profundidade do mergulho que é 689metros pelo valor da zona de pressão que é a cada 10 metros,  então temos 69 zonas de pressão distintas (incrementais), deste modo é só multiplicar o nº total de zonas de pressão percorridas pelo submarino, pelo valor real de incremento de cada zona de pressão, que é 101kPa = 6.969kPa (pressão externa, exercida pelo mar na estrutura do submarino) na parte de fora.

Como se faz em um batismo de caverna, apagamos todas as luzes e ficamos em silêncio para escutar o “som do nada”. Tinhamos um edifício de 100 andares de água em cima de nossas cabeças e a pressão nesta profundidade é absurda. Um copinho de isopor para café que estava comigo sentia a pressão interna na cabine, seu tamanho deve ter diminuído expressivamente, mas eu não lembrava onde estava. Ainda assim, nossa pequena Idabel nada sentia, nenhum estalo de reclamação, nada. Éramos nós e o vazio. Talvez o maior contato da alma que um ser humano possa ter com ele mesmo. Nosso momento “blackout” durou 1 minuto ou mais, mas acredite, pareceu uma vida!

Missão cumprida? Bem, se você é daqueles que dizem “tudo que sobe, tem que descer”, posso dizer que você está mal informado. Teríamos todo o caminho da volta para cumprir.  Foram 5 horas percorrendo um mundo desconhecido e que me transformou para sempre.

Dizem também que a volta sempre é mais rápido, e é. Saindo pelo tortuoso caminho entre os cânions da ida, posicionamos Idabel como uma nave em ritmo de decolagem: proa empinada para cima, nosso corpo em posição 75 graus. Cilindros de oxigênio inundando os compartimentos externos e…partimos! Víamos o profundímetro descer em contagem regressiva em direção ao zero. A impulsão que nossa nave pegou foi como uma rápida estilingada para cima, e o copo de café apareceu: ele caiu da prateleira no teto sob minha cabeça e aterrisou assustado em minhas mãos. Vi a comprovação da viagem. O copo que tinha o tamanho de um punho fechado havia se comprimido ao tamanho próximo ao de um dedal! E o desenho que eu havia feito permanecia na face, ou seja, era ele mesmo. Uau!

Levou mais 1 hora de viagem passando por todas as cores descritas, do negro infinito ao cinza, depois o azul intenso até o azul claro, quando finalmente, aparecemos repentinamente no horizonte como uma bolha de ar, o pum de um gigante…

Nossos holofotes acesos e luzes azuis e vermelhas piscantes criavam uma miragem de OVNI para qualquer marinheiro desavisado em alto mar e daí entendemos como lendas nascem. E assim chegamos com toda pompa, uma freada no início da superfície e gritamos “Viva!”

Nos abraçamos felizes. Éramos um time unido pelo sangue da experiência, pela coragem e conquista de momentos únicos e lugares até então inexplorados.

Ao abrir a escotilha como viajantes do tempo e espaço, descobrimos que já era noite. O oceano brilhava com o esplendor da Lua cheia mais incrível jamais vista. Estava realmente grande…Sobrenatural! Mesmo para Stanley que vivia na região foi uma surpresa, enorme e brilhante. E nossa cápsula brotava do oceano escuro rodeada de planctons fosforecentes! O que poderia ser melhor?

O brilho do luar era o caminho perfeito até nossa nave, e como o tapete vermelho do espetáculo, conduziu nossa equipe de resgate no barco até nós. Um marinheiro gritou: “Eles chegaram…vamos resgatar os astronautas do oceano”!

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